Por Alberto Villas (Carta Capital)
O
aiatolá Khomeini ofereceu 3 milhões de dólares pela cabeça do escritor Salman
Rushdie, o autor dos Versos
satânicos.Condenado à morte sem julgamento e recolhido em seu canto,
Rushdie evitava até mesmo olhar pelo olho mágico da sua casa.
Pela televisão, o mundo
assistia perplexo o muro de Berlim ruir. As placas de concreto iam desmoronando
em meio a lágrimas, abraços, beijos e emoção. O Portão de Brandemburgo se
abriu, e Berlim virou uma festa.
Em Pequim, um chinês
solitário enfrentava uma coluna de tanques indo pra lá e pra cá, evitando que
eles avançassem sobre os estudantes em revolta numa praça cujo nome é Paz
Celestial. A fotografia rodou o mundo, virou símbolo da resistência. Muita
gente tentou mas ninguém nunca localizou o tal chinês.
O
mundo perdia um grande escritor irlandês, o modernista Samuel Beckett, autor da
peça Happy Days. E o
planeta ficava um pouco menos surrealista sem o pintor espanhol Salvador Dalí.
O ditador romeno Nicolae
Ceausescu era perseguido a paus, pedras e balas, numa caçada feroz até ser
abatido a tiros. O seu corpo ficou ali caído no chão, exposto à visitação
pública e em todos os canais de televisão, ao vivo e em cores.
Agenor
de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, voava para Boston na esperança de estancar o
avanço do vírus da Aids. Um esqueleto, cabelo fino e andando de cadeira de
rodas, bandana na cabeça, ele resistia. Mas para a revista Veja, que o estampou em sua capa, ele
agonizava em praça pública.
O
disco Burguesia chegava às lojas com o seu grito
de guerra logo na primeira faixa: “A burguesia fede/A burguesia quer ficar
rica/E enquanto houver burguesia/Não vai haver poesia”.
Mas era na faixa de número
10 que Cazuza revelava ter se transformado numa cobaia de Deus: “Se você quer
saber como eu me sinto/Vá a um laboratório, ou num labirinto/Seja atropelado
por esse trem da morte/ Vá ver as cobaias de Deus/Andando na rua, pedindo
perdão/Vá a uma igreja qualquer/Pois lá se desfazem em sermão/Me sinto uma
cobaia, um rato enorme/Nas mãos de Deus mulher/De um Deus de saia/Cagando e
andando/Vou ver o ET/Ouvir um cantor de blues/Em outra encarnação”.
A
música quase não tocou nas rádios. Havia um silêncio também em torno da canção Azul e Amarelo, que Cazuza
compusera com Lobão e o outro Agenor, o de Oliveira, o Cartola: “Anjo bom, anjo
mau/Anjos existem/E são meus inimigos/E são amigos meus/E as fadas/As fadas
também existem/São minhas namoradas”.
Cazuza ainda usava as
últimas forças que tinha para cantar uma velha canção de Caetano Veloso que
ficou imortalizada na voz de Maria Bethânia: “Ah, esse cara tem me consumido/A
mim e a tudo que eu quis/Com seus olhinhos infantis/Como os olhos de um
bandido”.
Éramos todos rock and
roll. Por aqui dançávamos nas cavernas ao som da Plebe Rude, do Capital
Inicial, do RPM, do Barão Vermelho, dos Paralamas do Sucesso, dos Titãs do
Iê-Iê-Iê, do Camisa de Vênus, que teve seu nome vetado na Rede Globo de
Televisão. Camisa de Vênus, não! Simplesmente Camisa, sim!
Enquanto o Ultraje a Rigor
decretava que “a gente somos inútil, a gente não sabemos votar pra presidente”,
viajávamos ao som da banda Fellini e Violeta de Outono. Curtíamos o Rumo, o
Premeditando o Breque, a Língua de Trapo. Nos divertíamos também com Eduardo
Dusek cantando no banheiro, com o Kid Abelha, o João Penca e os Miquinhos
Amestrados, e a Blitz: “Ok, você venceu! Batata frita!” Radicalizávamos com os
Ratos de Porão, o Olho Seco, os Inocentes e uma epidemia de Cólera.
Nos
lugares mais sofisticados, a história era outra. New Order com Technique, The Cure com Desintegration, Depeche Mode
com 101 e Pixies com Doolittle.
Escondido
e no meio dessa confusão, eu redescobria as canções de Paul Simon e Art
Garfunkel: The sound of silence sound. E, ligeiramente desesperado,
acompanhava a rouquidão de Tom Waits em Raindog.
Éramos
todos rock em roll quando paramos para ouvir o Eterno Deus Mu Dança. “Não era
carnaval, nem São João. Nenhum balão no céu, nem luar no sertão. Nenhuma foto
no jornal, nenhuma nota na coluna social. Nenhuma múmia se mexeu, nenhum
milagre da ciência aconteceu. Nenhum motivo nem razão. Quando a saudade vem,
não tem explicação”.
Éramos
todos rock and roll quando fomos interrompidos por Marisa Monte cantando Andomeio desligado, Chocolate e o Xote das meninas. Era a volta
da daquela asa branca à minha vida.
Apareciam
novas meninas no pedaço. A sensação era Adriana Calcanhoto cantando Pão doce: “Não adianta mentir pra mim
mesma/Ficar me enganando tentando dizer/Que nunca na vida, nunca na vida eu
gostei de pão doce/Porque por mais que eu queira esconder/A verdade é que eu
adorava pão doce”.
Mas
um dia, quem chegou de repente foi Mauro e Quitéria.
Os dois cantadores vinham
caminhando pela praia da Boa Viagem, no Recife, quando os meninos dos Titanguesouviram aquele som
estranho. Correram para buscar um gravador e registrar aquela cantoria embolada
e sem fim pra colocar num disquinho, lá em São Paulo.
Era uma cantoria meio sem
nexo para nós, mas com pé e cabeça para os dois que entendiam sua língua muito
particular. Para bom entendedor, meia palavra bastava: “Õ Blésq Blom, um
sucesso na tela do cinema”.
Foi
Oscar Rodrigues Alves quem captou e registrou toda a história. Os Titangues eram os Titãs que resolveram, sim,
abrir o disco Õ Blésq Blom com Mauro e Quitéria cantando na
praia da Boa Viagem, para em seguida soltar o grito de guerra: “Miséria é
miséria em qualquer canto/Riquezas são diferentes/Índio mulato preto
branco/Miséria é miséria em qualquer canto”.
Os rocks vinham em
seguida, um atrás do outro, até chegar num labirinto de dúvidas: “Há uma
questão que há muito tempo me incomoda/Qual será a vantagem de se ter uma ou
duas corcovas/O que iremos formular é somente um questionário/Qual diferença
haverá entre o camelo e o dromedário”.
As
rádios tocavam Angélica com Eu
vou de táxi, Lulu Santos com Lua
de mel, Luiz Caldas com Odé e Adão, Xuxa com Ilariê, Tim Maia com Onde está você, Paralamas com o Beco, Maria Bethânia com Tá combinado, Gonzaguinha com É e o Legião com Que país é esse?: “Nas favelas, no
Senado/Sujeira pra todo lado/Ninguém respeita a Constituição? Mas todos
acreditam no futuro da Nação”.
Fonte: (Carta Capital) - http://www.cartacapital.com.br/cultura/1989-2004.html?utm_content=bufferf56b5&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer