Os anos passaram, e
Leandro virou Emicida. E, agora, tem na ponta da língua a resposta para os
comentários que ouvia na escola – e que ainda são frequentes. O 'matador de
MCs' – origem do apelido "Emicida" – usa o rap para "matar"
aos poucos o racismo que ele mesmo ainda sente na pele "toda vez que vai
pegar um táxi".
"Em geral, as
pessoas não conseguem entender o que é. A pior coisa do mundo é alguém ter medo
de você, e você não representa ameaça nenhuma para essa pessoa. Você chegar
para perguntar que horas são, e a pessoa esconder a bolsa", disse o rapper
em entrevista à BBC Brasil.
"Para mim, o
racismo é o tema mais urgente hoje no Brasil."
Nascido em um bairro
pobre da zona norte de São Paulo, o rapper conta que cresceu "zombando da
morte" em um ambiente onde ser abordado – e até agredido – pela polícia
era coisa corriqueira. "Era tão normal, que a gente falava disso e ria depois",
diz.
"Salvo pelo hip hop
e pela leitura", segundo ele próprio, o rapper não quis se distanciar da
realidade que canta em sua música e hoje mantém a sua gravadora independente –
"Laboratório Fantasma" – em Santana, perto da "quebrada"
onde nasceu.
Agora que acumula milhões
de visualizações em clipes no YouTube e faz shows até na Europa, Emicida se
sente na obrigação de falar sobre racismo.
"Todo
mundo está acostumado, na realidade brasileira, a ver os pretos numa prisão
perpétua atrás de uma vassoura", afirma.
No novo álbum, Sobre Crianças, Quadris,
Pesadelos e Lições de Casa, Emicida é veemente nas críticas ao
racismo, especialmente na música Boa Esperança, que
teve um polêmico clipe mostrando
uma rebelião de empregados domésticos contra patrões em uma mansão. O disco
também mergulha na cultura africana, que Emicida foi conhecer de perto na
viagem ao continente e que lhe serviu de inspiração.
No papo com a BBC
Brasil, o rapper falou sobre racismo, política, redução da maioridade penal e a
chacina que deixou 18 mortos na periferia de São Paulo no mês passado, entre
outros temas.
BBC Brasil - Você cresceu na periferia em um ambiente violento.
Como isso influenciou a sua vida e o seu trabalho?
Emicida - Eu nasci num bairro
chamado Jardim Fontalis (zona norte paulistana), bem pobrinho. Meu pai morreu
quando eu tinha seis anos, minha mãe se viu obrigada a criar a gente sozinha,
eu mais três irmãos. Hoje é um bairro que tem bastante gente, asfalto recente
se for ver, lojas, casas, mas quando cresci não tinha nada. Cresci ali, como eu
falo na música, zombando da morte, andando no meio do fio da navalha.
Só que acho que o que
salvou a minha vida foram duas coisas, o hip hop e a leitura, as histórias em
quadrinhos. A leitura começou a abrir um outro universo para mim. Aquilo
começou a ocupar meu tempo de uma maneira tão grande, que eu comecei a me
afastar dos "bagulho ruim" que tinha em volta.
BBC Brasil - Você já disse que era comum para você ver violência
ao seu redor e que era comum ver corpos com sangue nas ruas. Como foi viver
isso na infância?
Emicida - Acho que quando você
nasce num bairro violento, a pior coisa que aquele ambiente faz para você é
destruir a sua humanidade. E isso é uma coisa que é incomensurável, não tem
como você quantificar o quanto de compaixão aquela pessoa perdeu por estar em
um ambiente muito agressivo. A gente está falando de uma vida num barraco onde,
do lado, o cara batia na mulher dele e você ouvia tudo aquilo com quatro anos
de idade.
De repente você desce a
escada e tem uma poça de sangue no corredor e você fica, tipo, mano… Só que
hoje, olhando daqui, desse ambiente com a barriga cheia, com a internet rápida,
com a cama quentinha, você fala mano, isso é muito bizarro, uma criança não devia
estar ali. Só que naquela época, tudo isso era muito normal.
Esse negócio de sair
para ir para escola e ter um corpo morto e você pular aquele corpo e seguir
como um dia comum era normal. Se você vir isso nos Jardins (bairro nobre de São
Paulo), a pessoa tem que fazer terapia. Com nós, é normal.
Infelizmente, é tão
corriqueiro, que você acaba não dando a importância que aquilo tem, não dá mais
o desespero que aquilo dá. Você assiste a essa situação com uma calmaria que é
assustadora. E assusta porque aí a vida vale menos. Isso é um alimento muito
grande para a violência urbana, porque aí a molecada cresce como? A vida de
ninguém tem valor.
BBC
Brasil - Você é um crítico veemente sobre o racismo no Brasil. Como foi para
você crescer como negro, pobre, em uma comunidade? Que tipo de problema você
enfrentou?
Emicida -Você parte do princípio de que a sua vida não vale nada. Sua
vida não vale nada para você, e muito menos para polícia. Eu cresci numa pá de
abordagem violenta. Tudo isso era muito normal, você ser abordado pela polícia,
ser desrespeitado, agredido, era tão normal que a gente falava disso e a gente
ria depois. Para você ver o quão doentia era – era não, é – a nossa realidade.
Porque hoje é a mesma
coisa, é pior até porque hoje é mais normal, e você não pode nem reclamar
disso. Porque no Brasil, quando você vai apontar um problema, você é taxado de
vitimista. "Ai, está se fazendo de vítima." Eu não estou me fazendo
de vítima, eu fui vítima de agressão policial. Tem o lema do país de que
"bandido bom é bandido morto", mas isso aí só serve para pobre. Por
isso, eu bato na tecla do racismo.
Não tem como você não
olhar para todo esse problema e não ver que tem um recorte étnico por trás
disso. Não dá para você olhar para a maneira como a escravidão foi abolida no
Brasil e acreditar que a partir dali a gente vai estar criando um país
pacífico. Criou-se uma ideia de cordialidade, que na verdade não é cordial p*
nenhuma.
Porque você tem um país
que mata 55 mil pessoas num ano… Tem país que está em guerra que mata menos. E
aí você vem falar para mim que o brasileiro é um povo cordial? O brasileiro
acredita que é um povo cordial para fugir dos assuntos urgentes que ele tem no
dia a dia. Mas o brasileiro é um povo agressivo. Essa violência tem base no
racismo, no machismo, na homofobia, na própria diferença econômica das pessoas.
BBC Brasil - No seu novo clipe, Boa Esperança, você retratou uma revolta de empregados
domésticos contra seus patrões. Como se desenvolveu a ideia?
Emicida - O rico não lava o
próprio banheiro nunca. É uma metáfora foda. O Brasil vai ser primeiro mundo
quando as pessoas tiverem consciência de que lavar o próprio banheiro não faz
delas menos humanas. Boa Esperança é sobre isso. Sobre esse buraco, essa
ligação que a gente ainda tem com o serviço doméstico e a escravidão.
Para mim, é um tema
urgente. Você tem um país que não se assume racista, mas você vai na faculdade
de medicina e não tem um preto. E aí as pessoas vão para uma roda de samba no
fim de semana numa favela onde tem vários pretos e eles se orgulham da diversidade
desse país. Mas elas não cobram essa mesma diversidade durante a semana na
universidade de medicina, no escritório, nos cargos mais altos do emprego
deles.
Todo mundo está
acostumado na realidade brasileira a ver os pretos numa prisão perpétua atrás
de uma vassoura. Isso começa a mudar – há muito tempo, claro, tem muita gente
lutando para que isso mude antes de mim, mas infelizmente não é mais comum do
que a gente gostaria que fosse.
BBC Brasil - O clipe é bastante agressivo, e você recebeu algumas
críticas de que poderia incitar a violência. Você teve algum medo disso?
Emicida - Não. Em momento nenhum.
Vou te passar algumas situações. Eu sou uma pessoa que circula pela cidade. Eu
venho lá do Fontalis, passo pelo Cachoeira, Vila Zilda, de repente, vou fazer
uma coisa lá nos Jardins, filmar, fotografar, ou até mesmo fazer um rolê com
meus amigos. E é impressionante como quando eu saio da beirada da cidade, eu
vejo mais pessoas pretas e quando eu chego no Jardins tem, tipo, eu. Só.
Entendeu? Isso é agressivo.
Quando eu estou gravando
na periferia de São Paulo e eu vejo a diversidade do Brasil e, de repente,
quando eu vou para um lugar onde o dinheiro está presente e aí todas as peles
mais escuras desaparecem, isso é agressivo, isso me agride, isso me deixa triste.
Quando eu sento numa reunião com uma empresa, com uma marca, que eu chego lá, e
os únicos pretos sou e o meu irmão Fióti, que trabalha comigo, isso é
agressivo, isso é violento. Boa Esperança eu não acho nem um pouco violento.
É um clipe denso. E por
que ele deixa todo mundo de cabelo em pé? Porque todo mundo vê aquilo todo dia,
sacou? Todo mundo sabe o quanto aquilo é real, só que ninguém toca no assunto.
Porque a gente foi educado assim – "não, não fala desse negócio de
racismo". Você vai chegar lá e todas as empregadas vão ser pretas, todos
os garçons vão ser pretos, mas… é como sempre foi, entendeu? Aí quando chega
alguém, principalmente um preto, e sugere que isso tá errado, ahhh menina! Aí é
arrogância, aí é "agora eles querem tudo", aí tem a resposta que vem
direto: "agora tudo é racismo". Só que sempre foi. Mas agora as
pessoas não querem mais morrer caladas, entendeu?
BBC Brasil - Você foi à África antes de gravar esse disco buscando
recuperar parte da conexão do Brasil com o continente africano. Quais
influências trouxe de lá? O quão vivo você acha que ainda é o passado da
escravidão no Brasil?
Emicida - Acho a realidade
brasileira tem uma pá de lampejo da escravidão. Seja na relação da polícia com
a sociedade e com a parte pobre da sociedade; seja na questão que a gente
levanta no Boa Esperança, que é
o trabalho doméstico; seja na relação patrão-funcionário, em que você tem um
sistema de opressão no qual a pessoa acredita que, porque ela está te pagando,
ela tem direito a muito mais coisa do que é a sua função naquele lugar.
Você tem vários tipos de
assédio dentro do ambiente de trabalho, e eu acho que isso é decorrência de uma
sociedade que não se desconectou completamente do "deixar de ser dono do
outro". Por isso, acredito que as heranças da escravidão são completamente
vivas, são muito fortes até hoje, no dia a dia do Brasil.
A gente foi para África
com a intenção de restabelecer uma conexão que foi rompida há séculos, de uma
maneira brusca, e a gente não teve como se conectar. Então, o branco que
descende de espanhol fala "ah, meus parentes são da Espanha", e eu
não posso dizer para você se meus parentes são de Moçambique, de Angola, da
África do Sul… porque eles vieram trazidos à força, e os livros de registro
sobre isso foram queimados, foram destruídos numa atitude de rancor de pessoas
que discordavam da abolição da escravatura.
BBC Brasil - Você chegou a ver alguma evolução no problema do
racismo no Brasil desde a sua infância até aqui?
Emicida - Senti mudança, eu vou
ser injusto se eu disser que não. Existem muitas pessoas, o próprio movimento
negro organizado, MNU, sabe? Gente como o pessoal da Bahia, do Quilombo Xis.
Esses caras lutam e lutaram há muito tempo e com muita força e com muita
inteligência para que eu possa levantar a minha cabeça.
Aqui em São Paulo, o hip
hop fez a gente sentir orgulho da nossa cor, do nosso cabelo crespo, buscar
conhecer mais sobre os nossos antepassados. Porque a cura para o racismo é o
conhecimento, sabe? É isso. O que vai fazer com que as pessoas passem a se
respeitar e a reconhecer a grandeza do outro é saber a origem daquelas pessoas.
Eu me sinto feliz,
otimista de ver a molecada soltando o cabelo, as meninas se sentindo bonitas,
querendo ser a Beyoncé agora. É uma parada que me orgulha muito. Eu cresci em
um ambiente que era completamente diferente, onde a gente era xingado na rua e
não sabia como revidar. Você trancava aquilo, voltava para casa triste e não
podia reclamar, porque quem reclama é o fraquinho, e você não queria ser o
fraquinho.
Na escola, eu tinha que
dar soco todo dia. Aí chegou uma época na 3ª série, eu parei de estudar, parei
de ir para escola porque falei: não vou ficar indo para escola para brigar todo
dia porque os caras vão fazer piada do meu cabelo, vão me chamar de macaco. E
eu não sabia responder. Porque eu não tinha conhecimento nenhum sobre mim,
entendeu?
Todos os ambientes em
que eu vivia, inclusive a favela, eram racistas. E lá tava cheio de preto, mas
nós não sabíamos como nos defender desse tipo de agressão. A gente se sentia
errado. Dentro desse universo aí, a gente tem uma série de conquistas.
BBC Brasil - Você relatou recentemente um episódio em que estava
tentando pegar um táxi e foi vítima de racismo. Isso ainda é frequente na sua
vida?
Emicida - Sofro porque eu não tenho
carro até hoje, eu ando de bicicleta… e aí toda vez que isso acontece, tem
alguém que fala: você já devia ter um carro…
BBC Brasil - Mas a saída é ter um carro?
Emicida - Então, mas é isso que eu
falo... Pô, e aí? Você vai respeitar meu carro? Tem que respeitar a minha
pessoa…
Todo mundo fala também:
"você tinha que ter o Uber, você não usa o aplicativo?". Quer dizer,
a gente não vai falar do racismo, a gente vai falar de como eu posso pegar um
táxi, entendeu? Pô, eu tenho aplicativo de táxi, eu estou falando que eu estou
andando na rua e o cara tem uma expectativa em mim de que eu vou assaltar ele,
de que eu vou matar ele e... e eu só quero pegar um táxi, entendeu?
BBC
Brasil - E isso acontece frequentemente?
Emicida - Aconteceria com mais
frequência se eu pegasse mais táxi, entendeu? Mas é muito frequente. Se você tá
de quebradinha aqui é uma coisa, mas se você vai para os bairros mais chiques,
é muito frequente, muito comum.
BBC Brasil - Como você reage?
Emicida - Já tive ódio… às vezes
eu fico bravo. Às vezes discuto, mas depende do dia. Quando estou mais
bem-humorado, eu discuto. Hoje me dá uma tristeza.
Mas é uma coisa que,
mano, em geral as pessoas não conseguem entender o que é, porque a pior coisa
do mundo é alguém ter medo de você, e você não representa ameaça nenhuma para
esta pessoa. A pessoa olhar para você e ver um monstro, e você está querendo pedir
uma informação, sabe? Você chegar para perguntar que horas são, e a pessoa
esconder a bolsa, sacou? É isso.
E isso acontece todo dia
com nós, comigo… aí eu falo, comigo, que sou famoso, imagina com os caras que
não estão com a cara na TV todo dia, entendeu? Aí os caras falam: "pô, mas
você só fala disso, só fica batendo nessa tecla…" Mas se eu não falar,
ninguém fala, entendeu?
Eu, que pelo menos
cheguei até aqui, acho que tenho a obrigação de falar: mano, a gente tem que
olhar um pouco para isso, tem um monte de gente morrendo por causa disso. Aí a
vida vale menos, a vida dos pretos vale menos ainda. Por que que a polícia mata
tanto na favela? Por que 77% das vítimas dos homicídios são pretos, sacou? Não
dá para não fazer uma associação com racismo.
BBC Brasil - A política virou muito Fla-Flu no Brasil, criando um
ódio muito grande por pessoas que pensam diferente. O que você acha disso?
Emicida - A gente volta naquele
tema da cordialidade do brasileiro. A gente não é educado para discordar, e
todos os que levantam o dedo para fazer uma simples pergunta, tipo, por que que
isso não é desse jeito? Aí você é o agitador, você é o subversivo.
Na política, cada um tem
seus interesses. E o povo assimilou isso da maneira mais errada. Porque aí
misturou com a Copa do Mundo e trouxe esse clima aí do debate, do tipo "ou
tá com nóis ou tá contra nóis".
Tipo... Nunca foi tão
fácil tomar uma posição, principalmente num lugar como o Brasil. Não é tão
simples assim. Aqui é muito mais complexo para você tomar uma posição política.
Não é tipo: "ah, eles são a esquerda, eles são a direita". Tem várias
camadas, várias nuances.
Dentro disso aí, a coisa
mais burra que você pode fazer é falar: "ah, eu sou a verdade absoluta.
Sigam-me". E a gente é educado dentro dessa cultura, dessa lógica. É
ignorância, e isso para mim é um grande retrocesso. No Brasil, por um lado eu
vejo a autoestima das pessoas caminhando no sentido do futuro, do século 21,
mas por outro eu vejo a posição política e humana de várias lá em 1800 ainda.
BBC Brasil - Sobre a chacina em Osasco: o número de mortos em
chacinas neste ano em São Paulo já supera o de chacinas no ano passado em todo
no Estado. O que isso representa para você?
Emicida - Uma guerra. Olhando
diretamente a gente está falando de uma guerra. Uma guerra declarada a uma
região, a um grupo social étnico da região de um país.
Mas eu acho que a forma
como isso reverbera também fala muito sobre a posição que o Brasil assume
dentro disso. Esse negócio de ninguém tocar nesse assunto significa que quem fez
isso não está sendo criminalizado. O que pode ser visto como um grande
incentivo para que isso continue.
Esse é o grande
problema. A discussão que não aconteceu. O problema do Brasil é o que não foi
perguntado. É no silêncio que a gente morre. É na escuridão que a gente morre.
E é nisso que a gente está agora.
BBC Brasil - Você tem feito campanha contra a redução da
maioridade penal e rebatido a proposta – agora
aprovada na Câmara dos Deputados. Por que você entrou na campanha?
Emicida - Porque não tem escola no
meu bairro. Tem uma escola caindo aos pedaços e uma creche caindo aos pedaços.
O dia em que tiver estrutura lá para os moleques serem outra coisa, aí eu vou
achar da hora. Aí eu vou achar que vocês podem perguntar, propor a coisa que
for, aí eu posso debater pensando nisso. Hoje, propor redução da maioridade
penal é covardia.
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