Por Ana
Lúcia Azevedo
Hoje começa o
fim de semana, e muitos brasileiros planejam as mais do que tradicionais
peladas, com três, quatro horas de futebol. A princípio, diversão e sinal de
que, afinal, não são sedentários. Mas a batida expressão “só-que-não” nunca
teve uso tão apropriado. Não só são sedentários quanto temerários. O exercício
visto pela lente da ciência revela que a pelada pode até ser divertida, mas não
traz benefício para a saúde. Na verdade, é arriscada. O mesmo vale para
desportistas de fim de semana em geral. São os motoristas de domingo da saúde.
Retrato de um país sedentário, em que só 30% da população é fisicamente ativa e
apenas entre meros 2% a 5% fazem exercícios em volume ideal. No Brasil, 300 mil
pessoas morrem por ano de doenças associadas diretamente ao sedentarismo, uma a
cada dois minutos, diz o médico Victor Matsudo, consultor da Organização
Mundial de Saúde (OMS) para atividade física e coordenador da Rede de Atividade
Física da América Latina.
No mundo, afirma ele, são 5,3 milhões
de mortes por ano. O vírus ebola, observa ele, matou cerca de 16 mil pessoas em
18 meses.
— De ontem
para hoje, 154 mil pessoas no mundo morreram dessas doenças, principalmente as
do coração. O sedentarismo é o fator de risco isolado, mas prevalente. A
comunidade médica e científica demorou muito para acordar para o problema — diz
Matsudo.
CORPO
PRÉ-HISTÓRICO EM ROUPA MODERNA
Especialistas
compartilham a preocupação:
— O
sedentarismo é hoje o maior problema de saúde pública do país, o maior fator de
risco isolado. É epidêmico e não recebe a devida atenção. Está na origem de uma
série de doenças evitáveis — garante o professor de cardiologia da UFRJ Claudio
Gil Araújo, um dos maiores especialistas do país em medicina do esporte e do
exercício, com décadas de experiência que incluem o atendimento de atletas
olímpicos a senhores de 97 anos.
O sedentarismo
avança com a vida moderna, na qual se faz quase tudo sentado, no transporte, no
lazer e no trabalho. Um exemplo está na exposição “Rio: primeiras poses —
Visões da cidade a partir da chegada da fotografia (1840-1930)”, no Instituto
Moreira Salles. A observação de fotos antigas de transeuntes do Centro do Rio
há mais de um século revela como a maioria das pessoas era mais magra, destacam
os médicos. Não que fizessem ginástica, mas suas vidas eram ativas, andava-se
mais. Atividade física não é o mesmo que esporte, lembra Matsudo.
A dose semanal
mínima de exercício, segundo Araújo, é de 75 minutos de atividade intensa ou
150 minutos de moderada. Ele lembra que o estado do sedentarismo pode ser ainda
mais grave do que o oficial, pois os dados vêm da pesquisa nacional Vigitel,
importante, mas baseada em autodeclaração e feita apenas nas capitais. Ou seja,
nem todo mundo que se declara ativo de fato é. E aí voltamos aos atletas de fim
de semana, aquelas pessoas que fazem exercício uma vez a cada sete dias e se
consideram ativas
O fisiologista Igor Lucas
Gomes-Santos, da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do
Exercício do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP, explica por
que o exercício esporádico é perigoso:
— Jogar
futebol durante três horas, uma vez por semana, é pior do que não fazer nada.
Isso gera estresse oxidativo nas células, um processo que deflagra inflamação e
desequilíbrio no organismo. Se você faz atividade até por menos tempo de uma
vez, mas com regularidade, seu corpo é vacinado pelo exercício. Ele gera doses
pequenas de estresse e essas levam a adaptações benéficas, ativam mecanismos
protetores — salienta o pesquisador. — O exercício é homeostático. Ele
normaliza tudo o que está alterado. Se a pressão está alta, ele baixa, por
exemplo. E isso acontece porque nosso corpo evoluiu para o movimento. E essa
adaptação ao movimento faz com que precisemos de estímulos. Pequeninos
estresses diários. O exercício faz esse papel — diz.
E quando essas
doses de estresse que mantém o corpo azeitado entram em descompasso, começam os
problemas, observa.
O Homo sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos e evoluiu
para ser ativo, para correr pelo menos uns dez quilômetros por dia para comer e
não ser comido. E assim foi a vida até há cerca de 11 mil anos, quando surgiu a
agricultura. Ainda esta exigia grande gasto energético.
COLATERAIS
As coisas não
mudaram muito em termos de consumo de energia com a Revolução Industrial, já
que as pessoas trabalhavam com grande esforço físico e andavam muito. Só há
pouco mais de um século o trabalho se tornou mais sedentário; o transporte,
idem; e a comida, abundante. A vida se tornou confortável. Só esqueceram de
combinar com a evolução. O corpo continua o da Idade da Pedra, apenas vestido
para o século XXI, em tamanhos cada vez maiores. A vida moderna proporcionou
maior expectativa de vida (cerca de 30 anos maior que há um século), maior
estatura (em média, sete centímetros a mais nos homens) e a eliminação de
doenças infecciosas em grande parte. Porém, trouxe números epidêmicos de
doenças menos frequentes há cem anos, como diabetes do tipo 2, certos tipos de
câncer, mal de Alzheimer e males cardíacos.
— Vivemos com
tecnologia moderna e corpo pré-histórico. E a regra do jogo é: tudo o que você
não usa perde. Quando surge uma doença, não está preparado — salienta
Gomes-Santos.
Quando nos
exercitamos, o RNA em nossas células responde. É convertido em proteínas. A
meia-vida desse RNA alterado pelo exercício é de segundos a dias. Em geral, o
efeito dura cerca de 36 horas, diz Gomes-Santos.
— Hipertensos
que se exercitam reduzem a pressão em 24 horas. Diabéticos sentem melhora nos
níveis de insulina em duas semanas. Mas o efeito é temporário — destaca.
Precisamos
sempre renovar a dose de atividade. Se paramos, o efeito é negativo, diz:
— Ficamos sem
proteção e apenas com a parte ruim, que é o estresse oxidativo. Por isso, a
regularidade e a progressão são importantes, e os exercícios intensos e
esporádicos, péssimos.
O educador
físico Marcelo Cabral, que trabalha com reabilitação, alerta para outro aspecto
do problema:
— A atividade
faz tanta diferença que, muitas vezes, uma pessoa com doença cardiovascular,
mas bem condicionada fisicamente, apresenta um risco menor de males do coração
do que um sedentário aparentemente saudável.
Araújo
acrescenta que o repouso absoluto é um vilão a ser evitado. Pessoas doentes
confinadas numa cama sofrem danos colaterais sérios.
— A cada dia
deitado se perde 1% da capacidade física. Um mês de internação produz efeitos
avassaladores sobre o corpo, que não foi feito para isso. Nosso manual de
fábrica tem instruções para atividade e nenhuma para repouso exagerado. É por
isso que o exercício é o melhor remédio. Atacar as causas. Os medicamentos
atuam sobre as consequências — frisa Araújo.
O cardiologista Claudio Domenico é
pioneiro na prescrição do exercício a seus pacientes.
— O indivíduo condicionado vive melhor
e tem risco reduzido para muitas doenças — observa, ele próprio atleta, que
rema de quatro a cinco vezes por semana — O médico precisa dar exemplo — diz.
Tanto ele
quanto Araújo destacam que o estímulo à atividade física é o maior legado que
as Olimpíadas podem deixar para o país.
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